quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Duplipensamento

Das coisas da vida, sempre tive predileção pelas palavras, a maior idolatria. Na leitura ou na escrita, na música, nos filmes, no teatro, pra mim sempre foi sobre palavras. Dizer palavras, ouvir palavras, sussurar vidas e vidas de declarações de amor e ódio, tratados inteiros de prestidigitação da dor, manuais de como viver em paz. Tantas vezes me salvaram de mim e de me deixar corroer pela acidez da vida que me agarro a elas como paraquedas. São, pra mim, tão sagradas que pareço empalidecer ao ter agora que aceitar que tantas vezes me enganaram e construíram castelos de nuvens nos meus pensamentos e no meu peito. Daí passa um vento, e tanto se desfaz, e eu fico alí, apegada às palavras, repetindo que não é possível. Mas é possível,  é verdade, que a crueza do mundo se mostra muitas vezes sem som, sem letra, numa ação afiada e pontiaguda rasgando o peito de ponta a ponta. Choro assumir que tanto é dito por covardia, por malícia ou por desdém. É como se desvelasse uma verdade escondida bem debaixo do meu nariz a vida inteira, como finalmente achar a cicatriz de vacina que quase não se vê no meu braço direito. Não estou imune às palavras, sinto como criança que ouve histórias sobre um mundo fantástico e acredita violentamente, não acredito é na mentira. Como será possível que tanta mentira se diga, e como não seria possível que se dissesse, se eu mesma já menti? Duplipensamento. Prego peças em mim mesma, como a piada de mau gosto do tempo e do som, da fúria. Nada concluo, fico em suspenso, que é mesmo isso que escrevo? Verdade ou mentira? Que é isso que leio e ouço e digo?

Essa obsessão pela verdade algum dia ainda me atira de um prédio.

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